20/10/2020

À francesa

Sempre gostava de ficar em casa aos domingos, naquele embalo de comer o que tivesse à mão, largada no sofá com o livro da vez e, claro, o momento fazer nada, ouvindo CDs. Assim era nos anos 80 do século passado quando a mortal pandemia da AIDs apavorava toda uma geração ao redor do globo, até se saber que havia prevenção eficaz, embora até hoje não tenha chegado uma vacina para o HIV.

Meu amor se você for embora / Sabe lá o que será de mim / Passeando pelo mundo a fora / Na cidade que não tem mais fim...

Ao som de Marina Lima, recordava os momentos felizes de um caso recém-terminado. Nem tão recente, nem tão caso. Uma brincadeira gostosa, que dava liga na mesa e na cama, mais saborosa inda porque secreta.

Temia que os colegas de trabalho descobrissem que a chefona saía por uma porta e o seu segundo, num instante, fosse por outra para na garagem combinar o programa da noite. Às vezes mais alguém descia, e a conversa engatava o planejamento da reunião do dia seguinte, na maior naturalidade.

Ainda achava melhor que ninguém tivesse tomado conhecimento, pelo bem do ambiente de trabalho. Era tão difícil manter autoridade numa equipe de 45 pessoas, a grande maioria formada por homens, e ainda os patrões, nordestinos da gema. Já era surpresa terem dado o cargo a uma mulher com pouco mais de 30 anos!

Mas fugir pouco antes da hora do almoço, no dia dos namorados teve sabor de travessura, como tocar a campainha do vizinho e sair correndo esbaforida, para voltar com quase sem fôlego, rosto afogueado e carinha de inocência.

Ele foi visitar as filhas pequenas, jantou e brincou até levá-las para a cama. Era tarde, mas a mãe esperava para conversar sobre os ajustes da separação ainda pendentes e, conversa vai, conversa vem, também foram para a cama. Assim ele contou na noite seguinte.

Ora dando fora, ora bola / Um irresponsável pobre de mim...

Lembrou-se do susto, uma decepção pontiaguda como uma picada da injeção de benzetasil, esperando a dor que viria em seguida. Mas o que veio foi uma calma inexplicável quando lhe disse: - Então tá, acabou para nós.

Riu, lembrando-se do olhar de decepção que ele fez ao balbuciar algo como “mas precisa?” a que não deu importância, chamando a conta do restaurante para acabar logo com aquilo. Será que passou pela cabeça dele que continuariam a se encontrar? Sim, eles sempre pensam.

Se eu te peço para ficar ou não / Meu amor eu lhe juro /Que não quero deixá-lo na mão /E nem sozinho no escuro...

O telefone interrompeu a música. Não é que era ele a dizer que estava na confeitaria bem em frente ao edifício dela e precisava lhe falar com urgência? Pensou por dois segundos e resolveu descer; aproveitaria para fazer um lanche, já que o dia passou na base de frutas e biscoitos.

Jogou um vestidinho fresco no corpo, passou a mão no cabelo, pegou a bolsa e o encontrou na mesinha mais ao fundo, à esquerda, onde sentaram por uma ou duas vezes nos tempos da molecagem.

Estranhou o ar grave, uma ruga na testa e as mãos girando a tulipa suada. Pediu um chope para acompanhar e refrescar a noite, enquanto olhava o cardápio sem decidir se comia uma quiche ou pedia o sorvete da casa, delicioso e que valia por um jantar.

Então ele falou, em voz baixa e olhos idem, que estava arrependido de ter voltado para casa, havia sido rápido demais e se deixou levar. Não estava feliz, Então, se ela o quisesse, iria imediatamente acabar com tudo e ficaria com ela.

Desta vez não se assustou. Acendeu um cigarro, bem devagar, deu uma, duas tragadas lentamente e propôs: - Vamos fazer o seguinte? Você resolve sua vida e daqui um tempo, quando estiver bem seguro e se ainda quiser, venha falar comigo.

De novo o olhar de espanto, parecia até que doía quando sussurrou o que pareceu um “então você não me quer”. Levantou e ia pedir a conta quando ela o interrompeu, dizendo que ficaria mais um pouco.

Tomou o sorvete, enorme, enfeitado com plaquinhas de chocolate suíço. Voltando ao apartamento, atirou a bolsa numa cadeira, ligou o som e se jogou no sofá para terminar o domingo.

E se você saísse à francesa / Eu viajaria muito mas / Muito mais...

 

04/10/2020

Reflexos

Chorei.
Nossa! Quanto varei
lágrima escorrendo
o gosto do desamor
da saliva ácida
que o frio deixou.


Corri.
Nossa! Quanto fugi
de quem me feria
do medo que tinha
na via vazia
que o tempo deixou.


Sorri
Nossa! Quanto eu ri
quando me descobri
numa nesga de sol
no caco de vidro
que me refletia.

 

No espelho

Há quem se ache no espelho
nas linhas e cores do tempo
quem sabe, só imagine
que ali mora a menina
na imagem embaralhada
de respingos da memória
na minha breve história
sempre bem estabanada
procuro o que me fascina
e nem sempre me define
assim como passatempo
Um ralado no joelho.

Um ralado no joelho
assim como passatempo
nem sempre me define
procuro o que me fascina
sempre bem estabanada
na minha breve história
de respingos da memória
na imagem embaralhada
que ali mora a menina
quem sabe, só imagine
nas linhas e cores do tempo
há quem se ache no espelho.